‘Tá achando ruim, me paga’: perfil que expõe caloteiros em MS pode resultar em crime
“Tinha uma época que eu trabalhava em um hospital. E o meu marido fazia massa de pastel, vendia doces caseiros e rapaduras, se virava nos 30. As pessoas começaram a me pedir, então, vira e mexe eu entregava no serviço. Mas, passava um dia, dois no máximo, se não me pagava eu ia lá e falava alto nos corredores, pra todo mundo ouvir: fulanooo, você tá me devendo! Ainda bem que aposentei, porque eu, em um grupo deste, não ia prestar. Ia sair falando, colocando a foto, comigo não tem dessa não”.
A copeira de 63 anos – para sorte dos devedores – já se aposentou, porém, diz que lembra detalhes dos momentos em que fazia cobranças. E não foram poucos: em mais de 30 anos de serviços prestados, não deixou ninguém passar batido e fez todos pagarem, sem ficar devendo “uma rapadura sequer”, como ela disse.
Atualmente, não é só pessoalmente ou na porta da casa do devedor que a cobrança é feita, já que a rede social também se tornou palco para “exposição de caloteiros”. E não é vez ou outra, espalhado no feed e sim em um grupo, onde uma das regras é: postou a foto é porque é caloteiro. E aí vem a enxurrada de comentários, de gente julgando, gente mandando pagar, rindo e fazendo meme das situações, entrando na onda e marcando o suposto caloteiro para que pague a dívida.
Grupo que expõe caloteiros de MS chegou a 10 mil membros
A reportagem do Jornal Midiamax acompanhou este grupo, que existe no Facebook e é específico para “caloteiros de Mato Grosso do Sul”. Há alguns dias, alcançou a marca de 10 mil membros e os administradores inclusive deixam um recado para quem os acompanha, já no início: “Tá achando ruim, paga a dívida”.
Um dos casos mais comuns são de pessoas que compram roupas, fazem o parcelamento e não pagam. Só que tem de tudo na vitrine de caloteiros e golpistas do Estado, com casos de moai de quem pegou o valor na sua vez e deixou de pagar, de quem pegou dinheiro emprestado e sumiu, quem pegou mercadoria para vender e não devolveu e nem pagou, gente que contratou serviço de serralheiro, pagou adiantado e ele sumiu, gente que vai embora da casa sem pagar o aluguel e por aí vai.
‘Up na caloteira’
Neste fim de semana, por exemplo, uma internauta integrante do grupo escreveu: “Up na caloteira, comprou roupa em agosto e até hoje não pagou disse que ia pagar um pouco hoje e fica dizendo que não tem dinheiro e ainda depois que paga de gatinha com as roupas fala que as roupas não presta!!!!! Toma vergonha e paga suas contas caloteira“, diz a postagem.
Na mesma hora, a pessoa exposta escreveu: “Vai tomar processo”. E aí as duas discutiram, mostrando prints de conversas e diversas outras pessoas se envolveram, contando outras histórias e dizendo pra mulher pagar o que deve e resolver logo a situação. Mas aí fica o questionamento, quem está certo nesta história?
Cobrança na rede social constrangedora e vexatória é crime
Segundo o advogado criminalista e diretor da faculdade de direito da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Fernando Nogueira, realizar cobrança via internet ou rede social, de modo que deixe a pessoa que está devendo (inadimplente) em uma situação constrangedora e vexatória, é considerado crime.
“Nós temos o Código Penal Brasileiro que também regula as questões relacionadas as cobranças das pessoas que devem, então, por rede social, não é o caminho ideal para que se faça cobranças, até porque você expõe a pessoa, deixa ela constrangida. Ou seja, ao invés de receber, ainda pode ser acionado judicialmente com um processo em decorrência do constrangimento devido à cobrança ser vexatória”, afirmou Nogueira ao Midiamax.
O correto, ainda conforme Fernando, é conversar e, de uma forma amigável, tentar receber. “Caso não consiga, o meio é a judicialização e fazer o que chamamos de execução desta dívida. Se ela for de pequeno valor, até 20 salários mínimos, você pode acionar essa pessoa via juizados especiais cíveis. Não tem custo com advogado, porém, precisa reunir a documentação e mostrar que a dívida é real e a pessoa se negou a pagar. Outro caso este valor seja acima de 20 salários mínimos e a pessoa não tenha condições de pagar um advogado, pode buscar a defensoria. Assim, via judicial, o devedor será intimado a responder ao questionamento da cobrança”, argumentou.
Se ameaçar, cobrador ainda pode sofrer processo criminal
No código do consumidor também é claro que, se a pessoa entender que está sendo ameaçada, o credor ainda pode sofrer processo criminal por ameaça, constrangimento ilegal ou até mesmo crimes como calúnia, difamação, injúria, tudo dependendo da forma como foi divulgada esta cobrança.
“Mais uma vez, o caminho ideal é buscar os juizados especiais cíveis e levar a documentação do que a pessoa deve para que, através do estado [juiz], se tenha um meio para receber aquele valor que foi discutido e não pago”, finalizou Nogueira.
Com informações do Midiamax